Koe No Katachi e as consequências da violência.





Olá amigues da Internet aqui mais uma vez está teu miasma favorito, Thiago, voltando das profundezas de um rio gelado para falar sobre um longa de Anime que particularmente eu gosto bastante.

Sim, venho falar de Koe No Katachi, ou no título em português, A Voz Do Silêncio. Para quem ainda não conhece o longa que adapta o mangá de mesmo nome da autora Yoshitoki Ōima, saibam que ele está disponível na nossa querida plataforma Netflix, e aconselho que vocês vejam o filme antes de ler mais a fundo pois, daqui em diante, vou focar em alguns aspectos da história. Então, SPOILERS são inevitáveis de verdade e não como o Thanos.
É importante ressaltar que talvez a obra tenha alguns gatilhos para suicídio.

Do que se trata?
Koe no Katashi conta a história de Shouko Nishimiya, uma menina surda que acaba de se matricular em uma nova escola e tem como objetivo fazer novos amigos e ter uma boa convivência ainda em seu ensino fundamental, planos que são frustrados por suas limitações e a falta de integração por parte de seus colegas. Pessoalmente, acho que essa primeira fase do filme abre também a discussão sobre inclusão e como é negligenciada a atenção devida às pessoas que necessitam dessas políticas.

Durante toda essa etapa do filme presenciamos dias e dias da Nishimiya sendo excluída e sofrendo bullying pelos outros colegas de classe. Mas, em especial, do jovem Shoya Ishida. Shoya é um recorte genérico a princípio, um garoto travesso que reage de forma violenta e relutante as condições de Shouko. Apoiado pelos demais colegas, ele tornava a vida da pequena Nishimiya um inferno, desde práticas discriminatórias até agressões físicas. Como por exemplo, um de seus atos favoritos era roubar os aparelhos de surdez da menina e joga-los fora. Já ela, por outro lado, insistia em querer fazer amizade, mas as barreiras comunicativas e do preconceito a tornavam um inconveniente ao olhar das demais crianças.




Algo que talvez passe despercebido quando vemos a obra pela primeira vez é o como a própria escola é negligente com a situação das crianças. O bullying sofrido por Nishimiya é escrachado de tal forma que quando tudo vem a tona, o professor da classe logo aponta Shoya como culpado. Porém, não houve uma intervenção anterior a isso, a abordagem da escola foi se manter passiva até a reclamação da mãe da Nishimiya sobre o bullying que sua filha vinha sofrendo.

É importante ressaltar esse estopim pois Shoya, sendo uma criança, ainda era ignorante as consequências de seus atos. O anime retrata isso de forma sútil, mas notamos que ele vem de uma família humilde com uma mãe cabeleireira que sustenta a casa cuidando de seu filho e sua filha sozinha e quando enfim a escola toma uma atitude tardia, a mãe dele toma toda a responsabilidade para si e resolve sacar suas economias para tentar restituir o valor dos diversos aparelhos de surdez destruídos pelo filho. Mas, não satisfeita com isso, a mãe de Nishimiya ainda a agride.

Shoya, ainda quando criança, teve a compreensão sobre seus atos, porém sem a devida orientação, as consequências apenas se tornaram combustível para sentimentos mal resolvidos. Entro novamente na negligência da escola que se perpetua mesmo depois do ocorrido. Shoya volta para o ambiente escolar taxado de vilão pelos próprios colegas, mesmo que estes também fizessem parte do bullying contra Nishimiya. Shoya havia se tornado um inimigo em comum, o que se sucede no fato de agora quem sofre bullying é o próprio Shoya e, pior do que isso, seu histórico o acompanhou pelos anos que se sucederam. Os colegas que foram para a mesma escola de ensino médio que ele logo espalharam que ele maltratava a colega com deficiência, pois já que esses adolescentes esqueceram da própria culpa, era importante que Shoya fosse sempre o vilão.





Os anos se passam, a vida segue e agora entramos na segunda fase do filme, com um Shoya mais velho. Com sintomas evidentes de ansiedade e depressão, Shoya se tornou um jovem de comportamento sociofóbico, que não consegue sustentar sequer um diálogo e a obra se dá em um ponto onde ele havia decidido se suicidar.
Assim que possível, Shoya arranjou um emprego de meio período e juntou dinheiro para restituir o gasto que sua mãe teve ao cobrir os custos dos aparelhos destruídos por ele. E não só isso, ele passou a se comportar sempre de maneira defensiva e inibida, evitando conflitos ou envolvimento direto. Ele não queria mais causar problemas, não queria mais ser um problema,e acreditava ser um, pois era assim que ele era tratado pelos ex-colegas e pelas antiga escola: o incorrigível valentão que não presta pra nada além de dar despesas para mãe.
Shoya decidiu que o mundo seria melhor sem ele e isso fez com que ele se colocasse em pé na beira de uma grande ponte. Mas, quando estava juntando coragem para seguir com sua morte, ele tem um vislumbre da jovem Nishimiya e então isso o detém, o fazendo analisar que antes de mais nada, ele deve desculpas à ela e vê naquele ponto uma boa oportunidade para contactá-la novamente. Dessa vez com uma maior compreensão de seus erros, com uma postura mais direita onde ele até aprendeu a falar a linguagem de sinais para poder se comunicar com ela.





Existe uma beleza sutil nessa obra quando se trata de relações interpessoais. A maneira que as personagens se portam é muito sensível e muito humana. Você consegue detectar a dificuldade de comunicação que Shoya desenvolveu em sua linguagem corporal e você detecta o sentimento de alívio e até um pouco de culpa de Nishimiya em suas expressões. O trabalho em deixar toda essa linguagem silenciosa é tão delicado e primoroso que você poderia assistir a algumas cenas do filme no mudo e ainda captar toda a essência e sentimento daquele momento, como se cada frame fosse pensado da melhor forma para passar a mensagem que deseja.

A verdade é que Koe No Katashi mostra um outro lado da moeda, o de como os agressores também podem ser vítimas e como é importante a oportunidade de redenção. Existe também uma trama amorosa subentendida ali no meio do contexto, mas o foco principal está nessas duas pessoas, cada uma culpando sua própria imaturidade e se martirizando por águas passadas. Nishimiya se sente tão culpada por tudo que aconteceu com Shoya que em dado momento no filme, quando os sentimentos transbordam, ela mesma tenta o suicídio ao tentar pular da sacada de seu apartamento. Felizmente Shoya está lá e a cena que sucede a essa tentativa de suicídio é uma das mais bonitas que já vi. Não em questão das consequências, mas sim por todo o contexto que ela se dá e como o diálogo nela se constrói. A jovem salta de sua sacada e Shoya, em desespero, tenta alcançá-la. Ele consegue evitar a queda e começa a implorar para os deuses que tenha a força para puxá-la, pensando: “Deus, por favor me dê só um pouco mais de força agora. Prometo não fugir mais do que me causa desconforto. A partir de amanhã, prometo olhar nos olhos e nos rostos de todos. A partir de amanhã, prometo ouvir as vozes de todo mundo. A partir de amanhã, prometo fazer o certo.”





A fluidez da cena junto da trilha sonora, tudo se molda para que você sinta um aperto no peito e deseje que ela consiga sair daquela situação. Shoya, naquele instante, tem seu momento máximo de redenção, pensando apenas em ajudar sua amiga. Com sorte, consegue puxá-la para um ponto seguro, porém perde o equilíbrio e cai.
É um cena intensa e abrasiva, o desespero que sentimos ao vê-lo cair antagoniza com a beleza das cores escolhidas para retratar essa queda. Flashbacks extremamente luminosos de cenas familiares e acolhedoras, tomam a tela enquanto o jovem cai desenfreadamente. Talvez uma metáfora visual para a depressão talvez ou uma mensagem da autora dizendo que as pessoas com depressão estão lutando o máximo que podem para sair dela, pedindo todos os dias um pouco mais de força e, às vezes, por mais que elas tenham as boas lembranças e os bons momentos, basta um pequeno desequilíbrio para uma queda inevitável.
Essa mensagem seria cruel demais se Shoya não tivesse sobrevivido a queda. Se o fim dele fosse ali, a obra não conseguiria passar a mensagem mais importante sobre todo o contexto que é a quebra do ciclo da violência e como foi importante para Shoya se perdoar para ser perdoado. Como foi importante para a Nishimiya parar de se culpar e como a vida desses dois jovens, que foram marcados pela violência ainda na infância, pode tomar um rumo melhor depois de ambos se aceitarem.



Ainda existe muito espaço para dialogar a respeito das outras personagens. Todas elas possuem características peculiares e a grande parte foi marcada por esse episódio do bullying com a Nishimiya. Algumas delas abrem espaço até para falarmos sobre as várias formas de violência, o como a manipulação emocional pode ser tão cruel quanto, ou se não até mais, do que a agressão física. Mas, acima de tudo, ver como todas as personagens são humanas e não apenas um recorte estereotipado. As impressões que a obra passa em sua primeira metade, na fase infantil, são totalmente desconstruídas na fase jovem da vida das personagens.

Koe No Katashi se propõe a discutir a violência de uma forma muito mais inteligente, uma proposta que aparece com certa similaridade em outra obra que resenhei aqui: Laranja Mecânica”.

Deixo a indicação da animação para todos que procuram um filme cheio de belezas sutis, diálogos inspiradores, fotografias estonteantes e algo a mais para se pensar!


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